Carta aberta aos policiais brasileiros
Vale a pena vossas senhorias morrerem “em defesa da sociedade”? Quanto vale a vida de cada um dos senhores? Uma salva de tiros de canhão e um rótulo de herói?
Venho por meio desta lhes propor uma reflexão acerca dos últimos acontecimentos na área de segurança pública no estado do Rio de Janeiro, buscando apelar para a consciência humana e social de todos vocês que integram as forças de segurança do Estado brasileiro. O primeiro ponto que gostaria de abordar nesta missiva, é o lugar que cada cidadão precisa entender que ocupa dentro desta sociedade capitalista, racista e classista na qual estamos todos “inseridos”. Isto posto, pergunto aos nobres agentes em que lugar dentro desta sociedade os senhores e senhoras se percebem incluídos? A que classe social vocês pertencem ou acreditam pertencer? E eu já lhes explicarei o objetivo do questionamento, apresentando um levantamento feito pelo Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro (ISP-RJ), em 2019, que mostrou que das 1.814 pessoas mortas em ações da polícia em 2018, 1.423 eram pretas ou pardas, e 43% delas tinham entre 14 e 30 anos de idade.
Por outro lado, dados do Anuário 2020 do Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostram que 65,1% dos 172 policias mortos em ações policiais, ou de folga em 2019, eram negros e de origem periférica. O mesmo levantamento aponta uma realidade na qual muitos dos senhores e das senhoras tentam fugir ou se deslocar: A maioria dos integrantes da base operacional das polícias brasileiras são pretos e pobres, e moram nas mesmas áreas que os pretos pobres vítimas da violência policial também residem. Ou seja, não é nenhuma ofensa aos senhores(as), ou muito menos um exagero retórico, quando se diz que pobre está matando pobre, e preto está matando preto nesta chamada “guerra contra o crime”, uma narrativa que analisaremos mais à frente. Já sabendo que a maioria de vocês são pobres e pretos, precisamos falar sobre o processo de desconstrução pessoal, social e humana, ao qual os caríssimos agentes são submetidos durante a sua formação para ingresso nas forças de segurança do Estado.
Respeitosamente, preciso dizer que todos vocês são submetidos a um processo de lavagem cerebral onde são convencidos de que não podem ser mais quem eram após ingressarem na polícia, que precisam enxergar a todos como suspeitos (ou potenciais inimigos), e que apenas esse alinhamento com as normas da instituição e com pseudo política de segurança do Estado, os fará dignos de ostentarem a falsa e limitada autoridade que o Estado lhes confere. Uma prova disso é que aos senhores e senhoras costuma se atribuir o título de “heróis”, uma “honraria” concedida muito mais pelo abandono e negação de suas próprias origens, do que pelo cuidado e defesa da sociedade. Até porque, caríssimos, se o Estado realmente os enxergasse como heróis, não os colocaria na linha de frente de uma guerra inútil, inócua e infinita. E basta que vocês mesmos se questionem a respeito de uma situação, no mínimo, estranha, envolvendo a operação policial no Rio de Janeiro, que deixou quatro policiais mortos: As diversas fotos onde o Governador do estado aparece alegre e sorridente ao lado de um ex-deputado estadual preso recentemente acusado de ser um operador da facção criminosa que foi alvo da mesma operação policial que deixou dezenas de mortos.
Os senhores não acham que o Governador do Rio de Janeiro lhes deve uma explicação sobre a diversas vezes em que esse suposto operador de uma facção criminosa esteve ao seu lado, seja cumprindo agendas oficiais - como durante uma cerimônia de formação de uma nova turma da PM no Rio de Janeiro, ou durante a entrega de unidades habitacionais no morro do Alemão (palco da operação) – seja em momentos de lazer como nos camarotes do Maracanã assistindo a um jogo do Flamengo? Por que lhes pergunto isso? Porque alguns dos mortos nesta megaoperação foram identificados como criminosos, em função de fotos publicadas nas redes sociais onde eles estavam em companhia de outros suspeitos, ou em situações que remetem ligação com o crime. E, se me permitem, faço outra pergunta? Quantas vezes vossas senhorias já classificaram alguém como suspeito, com base em fotos nas redes sociais ao lado de alguém já identificado como criminoso? Não quero com isso dizer que o Governador é criminoso, mas que ele precisa explicar a sociedade, e, sobretudo, aos seus “heróis”, o porquê de tanta proximidade com alguém suspeito de operar para a facção criminosa que ele diz estar combatendo. Vocês que estão arriscando suas vidas nessa jornada sangrenta não acham?
Outra questão que é preciso abordar com vossas senhorias, é a classificação de bandido na nossa sociedade. É possível que entre os 121 mortos identificados na operação do Alemão, boa parte – talvez a maioria – eram, de fato, criminosos, o que não invalida as críticas feitas a ação, uma vez que não temos pena de morte instituída no país. Aliás, em nenhum país do mundo a execução sumária é legalizada. E aqui entramos na narrativa da “guerra contra o crime” que fiquei de abordar nesta carta. Me permitam fazer outro questionamento: Por que o aumento do efetivo policial não faz diminuir o cometimento de crimes? Não que vossas senhorias não estejam trabalhando corretamente, mas já lhes passou pela cabeça que a estratégia empregada pode estar errada? Que o investimento em educação, cultura e saneamento básico, por exemplo, poderia ser uma espécie de “força auxiliar” da própria polícia no combate ao crime? Por que matar deve ser considerado uma solução para um problema tão complexo e que já nos devasta a muito tempo? Será que os nobres agentes não se sentem, nem por um momento, incomodados com a ideia de serem utilizados como executores oficiais de um Estado que não tem permissão para matar?
E voltando à questão de classe e raça, acredito que muitos de vocês tenham parentes e amigos morando nas periferias e nas favelas do Brasil, e que estão submetidos tanto a violência imposta pelo crime organizado, como à violenta ação de repressão utilizada pelo Estado nas regiões onde se encontram essas facções. Não que bandidos devam ser tratados como flores ou que não devam ser submetidos a uma repressão violenta em muitos momentos, mas é importante refletir - até mesmo como cidadãos oriundos dessas áreas – que muitos inocentes já foram mortos nessa guerra sem fim e sem inteligência. Quantas crianças e adolescentes, pretos e pobres como a maioria de vocês, que poderiam ser filhos, sobrinhos, afilhados ou parentes de vossas senhorias, já perderam a vida nessa guerra? Isso é justo? Respondam com sinceridade. Será que ódio – justificável, diga-se de passagem – que os criminosos despertam na sociedade, incluindo este que vos escreve, justifica a morte de inocentes para capturá-los? Em caso positivo, alguns dos senhores poderiam me explicar por que as forças policiais não ocuparam o Alemão após a “exitosa” operação que deixou dezenas de corpos estendidos no chão? É ofensa ou exagero chamarmos tudo o que aconteceu de mais uma operação enxuga gelo?
Me dirijo aqui respeitosamente ao senhor Comandante do Bope do RJ, que durante o velório dos policiais mortos declarou que “ninguém vai parar a gente”, numa clara demonstração de insubordinação às leis e a autoridade do Governador do estado. A não ser que a sua declaração tenha sido dada com a anuência do Governador que, apesar de todo empenho demonstrado no combate ao crime, ainda não explicou as fotos ao lado de um suposto membro da facção criminosa que ele diz combater. Entendo que o Comandante do Bope está tomado pelo sentimento de perda de companheiros de polícia, mas não se pode colocar a vida de outros companheiros em risco com ações que além de não acabarem com o crime, permite uma reação ainda mais violenta por parte dessas facções. Um exemplo disso, foi o arrastão promovido na Linha Amarela dois dias após a operação no Alemão, e que vitimou a jovem bancária Bárbara Elisa, de 28 anos, que levou um tiro no pescoço dentro de um carro de aplicativo que passava pelo local. Na verdade, estamos todos reféns do crime e da falta de inteligência do Estado para combatê-lo de forma efetiva e eficaz, colocando os senhores na linha de frente de uma guerra que neste momento também híbrida e visa atrair os holofotes para autoridades estrangeiras que têm o objetivo político de interferir no nosso território e na nossa soberania.
Termino esta carta com mais um questionamento: Vale a pena vossas senhorias morrerem “em defesa da sociedade”? Quanto vale a vida de cada um de vocês? Uma salva de tiros de canhão? Algumas dezenas de aplausos durante o seu funeral? Uma ajuda financeira para a família que ficou enlutada e devastada pela perda de um ente querido? Quanto valem as vidas de vossas senhorias? Umas dezenas de bandidos mortos como vingança? Um discurso do Governador dizendo que ali jaz um herói? Um programa de TV induzindo a população a vê-los como seus defensores? Isso é o suficiente para agradecê-los pela vida perdida? Quando vocês absorvem a ideia de que servir a polícia é um sacerdócio, e que devem oferecer a própria vida para cumpri-lo, vocês estão caindo numa armadilha que fortalece a ideia de que vossas senhorias são diferenciadas dos demais cidadãos. É como um cristão que acha que deve morrer por Jesus Cristo, porque foi chamado àquele sacrifício. Mas quem o chamou? Quem os chamou a algum sacrifício? A vida dos senhores vale muito para ser perdida por irresponsabilidade e incompetência do Estado.
Estejam certos de que a população não gosta de criminosos. Estejam certos de que a esquerda não defende bandidos. Estejam certos de que o crime não vai acabar com a morte de 100, 200, 300 ou 1000 criminosos. Estejam certos de que se vocês não entregarem suas essências e não abrirem mão de suas origens ao receberem uma farda das mãos do Estado, vocês podem ser instrumentos de transformação social, e importantes combatentes no processo de revolução popular que pode mudar tudo. Demo-nos as mãos e lutemos contra o sistema. Ele é o nosso verdadeiro inimigo. Um sistema classista que não permite que vossas senhorias exerçam autoridade nas áreas nobres do Estado, onde diversos agentes já foram humilhados pelos donos do capital. Me respondam com sinceridade, vocês fariam uma megaoperação igual a feita no Alemão, dentro dos condomínios de luxo onde muitos de vocês sabem que estão os verdadeiros líderes de organizações criminosas? Lhes seria permitido metralhar Alphaville, Morumbi, Leblon, Ipanema? Por que não, se dentro desses bairros existirem criminosos? Por que vossas senhorias são majoritariamente pobres, pretos e periféricos. E esse “tipo de gente” – que é o perfil da maioria da população brasileira - nunca terá, de fato, autoridade numa sociedade capitalista, racista e classista. Ainda que carreguem a alcunha de agentes da lei, como os senhores e senhoras. Somos todos classe trabalhadora e devemos permanecer juntos.
Cordialmente,
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

